28 Dezembro 2008 - 00h00
Entrevista - José Gil
“Há um combate entre o sorriso de José Sócrates e a crise mundial”José Gil, filósofo, acusa o primeiro-ministro de ter um projecto de carreira pessoal, autocrático, com um sorriso permanente. E o Governo de andar de fato cinzento.
Correio da Manhã/Rádio Clube – Sente-se bem no País em que vive?
José Gil – Razoavelmente. Não me sinto muito bem. A minha relação com Portugal é uma relação difícil e pode compreender-se porque eu sou um filho de um ex-colono, que viveu em Portugal, no fundo, dois anos. Aos dezassete, dezoito anos e depois voltei depois de praticamente trinta e cinco anos vividos, uma vida vivida em outro País.
EP – Em França.
- Em França.
EP – Um dos grandes sucessos, o livro que escreveu ‘Portugal, Hoje – O Medo de Existir’, foi publicado em 2004 e retracta a instabilidade, o desnorte, o medo de existir, sobretudo, e também uma análise à actualidade de então. O livro é publicado ainda com Santana Lopes no poder. Hoje escreveria o mesmo livro?
- Escreveria talvez, isto não tem muito sentido, noventa e tal cento do livro. Noventa e tal por cento escreveria da mesma maneira. Se bem que muitas coisas tenham mudado.
ARF – Para melhor ou para pior?
- Umas para melhor, outras para pior. E isto não é para fazer um equilíbrio. Não. Parece-se que são coisas diferentes. O que evoluiu para melhor é diferente daquilo que evoluiu para pior.
ARF – E o que é que evoluiu para melhor em Portugal nestes quatro anos?
- Olhe. Parece-me que há em Portugal cada vez mais uma aprendizagem por parte da comunidade portuguesa e da sociedade civil da democracia, da democracia dos direitos. E isso é bom, isso parece-me melhor. Depois há um desenvolvimento individual da criação cultural. E isso também me parece muito melhor. De certa maneira há, curiosamente é paradoxal o que vou dizer, curiosamente há uma espécie de liberdade maior mas que não vem do poder político, é uma liberdade maior que vem dos conflitos, dos embates sociais, do facto desses embates aparecerem mos meios mediáticos e serem consciente na parte da população. Também o facto de Portugal estar cada vez mais consciente do que se passa, como se dizia antigamente, lá fora. Quer dizer, Portugal está cada vez mais lá fora, o que dá uma reacção cada vez mais dentro. E isto é devido certamente a reacções sociais, das pessoas.
EP – Mas é a mentalidade dos portugueses que está a mudar ou são os mais novos que nasceram já depois do 25 de Abril, da Revolução de 74, que já têm outra forma de pensar ou não?
- Não. Teriam outra forma de pensar, mas não têm. E não têm, primeiro, porque herdam uma velha forma dos pais. E naquilo que mudam na sua vida de adolescente, de jovem da universidade ou do trabalho, pura e simplesmente, eles vão encontrar umas estruturas, vão encontrar quadros de vida, escritórios, aonde encontram, aonde vão novamente ter de se moldar aos velhos comportamentos, às velhas mentalidades.
EP – Salazar ainda está na fonte.
- Ai, eu acho que sim.
EP – Mesmo nos mais novos?
- Absolutamente. Mesmo que seja subliminarmente ou inconscientemente ele está. É claro. Para mim é claro.
ARF – Ainda somos um País salazarento?
- Ai somos. Somos um País salazarento em certas coisas. Não é um País salazarento.
ARF – Claro. Mas o que domina, o que importa, o que fixa, como disse a propósito dos jovens, ainda é um certo ambiente cultural que os domina, que os leva a pensar assim e também a comportarem-se de uma forma pequenina, como refere. Os portugueses gostam de ser pequeninos?
- Os portugueses gostam de ser pequeninos. Sabe, muitas vezes eu comparo as reacções às reacções dos habitantes das ilhas. Eu conheci uma ilha, conheci muito bem uma ilha onde vivi, que foi a Córsega, e fiquei de tal maneira marcado por aquelas mentalidades que quando vim para Portugal eu era capaz de reconhecer, ao fim de dez minutos de conversa, que aquela pessoa vinha dos Açores. Sem saber mais nada, outro indício. Quer dizer, há qualquer coisa de muito específico no habitante da ilha. É que a ilha é como um corpo de onde se sai e para onde se volta quase necessariamente. É muito difícil as pessoas desligarem-se da ilha.
EP – Nós somos um povo ainda fechado?
- Nós somos um povo ainda muito fechado que se está agora, agora, agora, quando eu digo agora são meses a abrir-se assim.
EP- E quantas gerações são precisas para nos abrirmos?
- Não sei. Não sei. Se há coisa mais difícil de mudar é o que se chama mentalidades, não é?
ARF – Mas há aqui um paradoxo. Temos muito o espírito da ilha, mas fomos um Império. Andámos por todo o mundo, conhecemos o mundo há muitos séculos. Porque temos sempre esse espírito da ilha?
- Nós não temos sempre. Primeiro, lembre-se que o nosso Império é um Império desmedido para a nossa capacidade e para a nossa economia. Em segundo lugar, só para lhe lembrar assim frases, lembre-se que o Salazar chamava ao nosso Império a nossa quinta. Isto é típico. Quer dizer que o Império não constituía um horizonte. Quer dizer, digamos, uma palavra de que eu gosto muito, não era um fora. O fora é um desconhecido. Não. Eu não estou a brincar, nem estou a forjar o que quer que seja. Lembro-me que quando vim de Lourenço Marques para cursar a universidade cá havia pessoas que me perguntavam: “Há leões em Lourenço Marques? Passeiam-se na rua?” Está a ver o desconhecimento total.
ARF – Referiu que um dos aspectos positivos em Portugal nestes últimos anos era as pessoas conhecerem melhor a democracia e estarem a viver melhor a democracia. Mas isto está a incomodar o poder político?
- Claro que está.
ARF – A incomodar muito?
- Esse é o aspecto, se falarmos unicamente no plano político. Portugal não é o plano político. Não é. Felizmente é muito mais do que isso. Não vale a pena bater no ceguinho, toda a gente fala nisso, eu também. Há realmente uma nova tendência para o autoritarismo, para uma nova forma de autoritarismo.
EP – Arrogância?
- Arrogância, autoritarismo. Quer dizer, desprezo da democracia em nome da vontade autocrática de um governante ou dois.
ARF – É o que se passa no caso dos professores? Nomeadamente neste momento em que os professores estão na rua, manifestações imensas. Refere-se muito à não-inscrição. A não-inscrição neste caso é o Governo ignorar isso tudo?
- Totalmente. É um exemplo típico de não-inscrição. Totalmente. Não só não-inscrição. Há pior do que isso. Eu ouvi o secretário de Estado, como milhões de pessoas ouviram na televisão, o secretário de Estado Pedreira dizer, depois das assinaturas, isto foi há três dias.
ARF – O abaixo-assinado.
- O abaixo-assinado apresentado no Ministério da Educação. Dizendo, mas isso podia ser forjado. Quer dizer. Eu fiquei com vergonha.
ARF – Porque não era preciso apresentar a escola.
- Não era preciso apresentar. Poder-se-ia forjar.
ARF – As assinaturas.
- Quer dizer. Não são as 60 mil assinaturas. É o facto de forjar. Percebe?
ARF – Claro.
- Quando isto vem à cabeça de alguém isto revela a cabeça de alguém.
ARF – Exacto. Mas isso incomoda muito. Estas manifestações sociais, de protesto, de viver a democracia, que nós estamos a aprender lá fora, a perceber, a abrir?
- Deve incomodar. Deve ter incomodado um projecto pessoal que nós não conhecemos nem nunca conheceremos.
EP – De José Sócrates?
- De José Sócrates. Mas que temos indícios. Um projecto de carreira pessoal. Isto é tudo muito pequenino, não estamos a falar de grandes cultos de personalidade nem de grandes regimes autoritários, nem nada. Seria á nossa medida mas seria qualquer coisa de novo. E repare como realmente há condições para um novo tipo de obediência ao poder.
ARF – Neste momento reforçado com esta sensação de pânico e de crise que as pessoas estão a viver em que aparece o primeiro-ministro a dizer que vai salvar todos, não é?
- Absolutamente. E repare como é o único. Quando eu falo de autocratismo ou autocracia estou bem consciente que não estou só a falar do Governo, estou a falar sobretudo de uma pessoa. Isto pode parecer anódino, não significativo. Nós temos um Governo, mas um Governo cinzento, morno. Quem é que sobressai ali? Nada.
ARF – Podemos falar de vários nomes.
- Nada. De vários nomes e nada.
EP – Sobressaiam talvez pela parte menos boa.
- Menos boa, não sorriem, não estão contentes com a vida, parecem mais ou menos autómatos. Há ali pessoas muito inteligentes, não se vê nada, tudo aquilo é fato cinzento. E no meio, ou por cima ou ao lado há uma pessoa que tem um sorriso sempre até às orelhas, um dos sorrisos extraordinários que não pára, pára de vez em quando, e como se a vida fosse o triunfo quotidiano do progresso e essa pessoa é o primeiro-ministro. Não é esquisito isto? Aquele sorriso não deveria contagiar os mais próximos? O sorriso e os afectos é o que contagia imediatamente. E não contagia.
EP - Quais são os melhores governantes?
- Não vou nomear.
EP – Há pastas mais sensíveis do que outras. A pasta da Educação é sempre sensível, a pasta da Justiça e da Administração Interna.
- Não lhe sei dizer. Não sei comparar.
EP – Mas a avaliação que acaba de fazer, do cinzentismo. É um cinzentismo geral?
- É um cinzentismo que se estende em geral. Quem é ali a pessoa? Havia ali um ministro, que era o António Costa, que tinha a sua autonomia. Bem, a começar pelo ministro do Trabalho, que é uma tumba, a acabar na ministra da Educação, cuja espontaneidade expressiva...é isso. Falta espontaneidade expressiva aos ministros. São muito simpáticos, podem ser muito simpáticos pessoalmente.
ARF – E até inteligentes.
- Claro. Mas não é isso. Há qualquer coisa que faz com que eles não se manifestem em sorrisos nem sejam espontâneos. Ora isso é o sinal de que eles não pretendem sequer seduzir as pessoas.
EP – E isso passa para os portugueses? Esse cinzentismo passa?
- Passa com certeza.
EP – E pode ser o ponto fraco do Governo?
- Não, há outros. Ponto fraco do Governo é o facto de não ter ideias. Esse é o ponto fraco do Governo. Mas que passa, passa. Repare que há aqui um paradoxo muito grande aparente. O facto de haver manifestações e manifestações não só na Educação mas também em outros campos do trabalho, como os funcionários públicos e as sondagens darem sempre uma vantagem muito grande a José Sócrates. As pessoas estão perdidas, as pessoas e o português por excelência é um ser que está sempre a hesitar. O desassossego do Pessoa é também uma passagem contínua de um sítio para o outro, de um sítio para o outro. Estão sempre a hesitar. E quando aparece alguém que se mostra determinado, forte, etc, a pessoa fica fascinada. Aconteceu com Álvaro Cunhal, aconteceu com Cavaco Silva. Quando aparece assim uma pessoa que sabe o que quer. Pode saber muito pouco, pode ser estreitíssimo, mas sabe o que quer e é dirigente e tem a aura de ser dirigente.
ARF – E os portugueses ficam deslumbrados com esse cidadão?
- Absolutamente. Ora a identificação que os portugueses fazem com o Sócrates, para as sondagens darem os resultados que dão, vem de uma identificação pessoal. Não vem de uma identificação com a política geral do Governo. Porque logo ao lado as sondagens sobre a política do Governo não correspondem a essa sondagem sobre Sócrates.
ARF – Exactamente. É diferente.
- É portanto qualquer coisa de pessoal. É uma relação pessoal. Enfim, ali temos uma referência. Agora, nós que não temos referência de nada, sobretudo do futuro que aí vem, há ali uma pessoa que não só sabe ou parece saber o que quer como está contente. Ainda para mais está satisfeito previamente com o futuro que vai vir. Seguimos uma pessoa assim.
ARF – Somos um bocado fatalistas nisso. É o Salazar, o Cavaco, o Cunhal, agora é o Sócrates e agora não há na oposição ninguém com esse espírito. Uma pessoa que nos inspire essa admiração. O homem ou a mulher estão contentes nós vamos segui-lo de forma acrítica, um bocado como a carneirada, não é?
- É mas também é outra coisa, sabe? Não é só carneirada no sentido pejorativo. É também necessidade de um líder e um líder é um chefe político que tem propriedades muito importantes como o de condensar, atrair uma série de forças e poder utilizá-las para o bem da comunidade. E pode deixar de ser líder, como em certas sociedades, meses depois. Mas durante aqueles meses em que foi líder é uma personagem venerada e que é necessária para a comunidade.
EP – Não se percebe muito bem. Cá está, é a mentalidade dos portugueses ou talvez por não haver uma oposição forte. Se por um lado se manifestam nas ruas contra as políticas do Governo, não só na Educação, por outro quando há uma sondagem o primeiro-ministro continua a subir. O que é que se passa na cabeça dos portugueses?
- É isso que eu quis explicar, enfim, na medida em que isso é possível. As pessoas identificam-se enquanto egos. Quer dizer, eu na minha pessoa sou uma pessoa insegura, incerta, cheia de hesitações, não sei o que fazer e tenho ali, eu, no fundo, identifico-me pessoalmente com o Sócrates.
EP – Nisso José Sócrates é bom?
- Muito bom. Perfeito, como sabe. Não é que seja um grande sedutor, é um bom orador, energeticamente contagiante, ora os portugueses estão ávidos de carisma. Não é que ele tenha carisma, mas o carisma é-lhe atribuído. E portanto recebe-se o carisma por refluxo. É aquilo que se dá e o que se recebe.
ARF – Isso não é também pelo facto de os portugueses terem medo de existir? É verdade isto? Precisam de alguém que tome conta deles, que os proteja, que lhes indique o Governo?
- Eu acho que é verdade e tem raízes históricas muito grandes e que foi sedimentado fortemente durante o salazarismo e que tem a ver com qualquer coisa que existe na sociedade portuguesa. Que é o facto de o português não atingir a maturidade.
EP – Precisa sempre do outro?
- Precisa sempre do outro, há qualquer coisa de adolescente no adulto, na sua estabilidade emocional, emotiva, no seu poder de iniciativa, no seu poder de risco em relação a si próprio.
EP – Podemos dizer que esta não é só uma crise económica?
- Está a falar de Portugal?
EP – Sim.
- Mas qual crise. É que agora nós temos duas, três. Antes da crise mundial já havia uma crise em Portugal. Agora já não há porquê?
ARF – Agora são muitas crises.
- É, não é?
ARF – E esta está a assustar muito mais as pessoas.
- Claro, porque já estavam assustadas e esta não depende de nós. Vamos ver, Agora há um embate, uma espécie de combate entre o sorriso do Sócrates e a crise mundial.
ARF – Agora vamos ver como se resolve.
- Bem, estamos a ver já as primeiras transformações. É que o sorriso já esmoreceu de há uns dias para cá.
EP – E no próprio Governo, não é?
- O Governo nunca teve sorrisos, excepto o ministro Lino, que ri de vez em quando fazendo gafes.
ARF – Voltando à Educação. Sempre tivemos um grande défice na Educação. Os alunos são mal preparados no liceu, chegam à universidade mal preparados e chegam à vida real mal preparados. Este processo nunca foi resolvido nestes anos de democracia. E cada vez está pior, não está? De preparar as pessoas para terem um olhar lá para fora? Como professor universitário não acha isso?
- Eu não posso falar ainda porque está a ser desenvolvido, está a começar a reforma universitária, mas no que diz respeito à reforma do ensino secundário eu acho, hoje acho que é um desastre. Lamento profundamente, tenho uma amargura profunda. Olhe, eu aí tenho uma amargura pelo meu País. Realmente. Realmente eu esperava qualquer coisa, e espero ainda não sei como. Porque é isso que vai mudar o País. Nós vimos de muito longe, de muito longe de analfabetismo, de iletracia, de pobreza. Somos um País secularmente pobre em tudo. Mentalmente e materialmente pobre. E era uma maneira agora de se transformar tudo.
ARF – Foi uma oportunidade perdida?
- Estou convencido que as reformas que estão a ser realizadas não vão transformar o nosso País.
ARF – É muitas vezes acusado de ser um pessimista por aqueles que não gostam de ouvir algumas verdades. É pessimista, optimista, isso pode-se classificar assim o que diz e analisa sobre a sociedade portuguesa?
- Eu já me expliquei várias vezes sobre isso. Eu acho que pessimismo, optimismo são atitudes que se têm em relação a uma linha histórica qualquer. Se se está convencido que essa linha vai para pior é-se pessimista. Se não é-se optimista. Mas são atitudes. Saber se intrinsecamente se é optimista ou pessimista, eu estou convencido que é muito difícil encontrar verdadeiros pessimistas. Porque aqueles que são pessimistas e que segregam, nos seus livros, nos seus artigos o pessimismo no fundo estão a alimentar o seu optimismo visceral, vital, que é de viver, é de gostar de viver com essa actividade de ser pessimista. Mais nada.
EP – Há pouco falava nos 40 anos que esteve fora de Portugal, nos anos que viveu em França, País em que se licenciou e doutorou. Chegou a Portugal em 1976 e fez parte do Governo provisório. Como é que foi recebido quando cá chegou pela comunidade filosófica?
- Não havia.
EP – E por outros sectores académicos?
- No fundo não havia comunidade filosófica. Tenho unicamente a lembrança de ter sido muito bem recebido pelo Fernando Belo, o professor Fernando Belo, que está jubilado agora. E mais ninguém, mais ninguém. Aliás, eu não estava ligado, nem em contacto com a comunidade filosófica. Eu era assessor do secretário de Estado.
ARF – Em 1976. Veio e foi-se embora outra vez.
- Foi.
ARF – As comunidades reagem mal às pessoas que fazem a vida lá fora, reagem mal aos estrangeirados? Faz parte também da forma como encaramos o mundo, o lá fora? É inveja do sucesso?
- Quando a pessoa vai lá para fora e vence. Porque há muitos portugueses e houve muitos portugueses que foram lá para fora e não venceram. Até acabaram muito mal. E eu conheci, até pessoas com talento. O exílio, quer seja forçado ou voluntário, é muito difícil, é muito duro. Muito duro. E há os que viviam, por exemplo, em Paris e constantemente existiam na Avenida da Liberdade em Lisboa. O que lhes interessava. Quer dizer, nunca foram contaminados, nunca tiveram um embate com uma sociedade extremamente dura, se bem que fossem bons tempos, os tempos do gaulismo. Dura porque era uma sociedade fechada também para os estrangeiros, era muito difícil entrar em famílias francesas, conhecer o modo de vida francês, por dentro. Mas como é uma sociedade, uma cidade extraordinária, Paris, havia sempre um cosmopolitismo, para empregar esta palavra, que era absolutamente extraordinário. Agora, isso para dizer o seguinte. As pessoas tinham inveja dos que iam lá para fora. Nós deixámos de ter aquilo que em psicanálise se chama os benefícios secundários da neurose. Quer dizer que não temos a almofadinha da mamã, estamos mal com a noiva ou estamos mal com a namorada corremos logo para a almofadinha da manhã. É um exemplo caricato mas é isso. Que nós tínhamos aqui, que eu tinha aqui. E quando se vai lá para fora deixa-se de ter.
EP – Ainda hoje é assim.
- Ainda hoje é assim. Ainda há os benefícios secundários. É pena.
EP – Eu estou a perguntar se ainda hoje é assim.
- Não. Já é diferente. Primeiro, a comunidade portuguesa agora é muito diferente porque é uma comunidade de segunda geração, terceira geração.
EP – Foi considerado um dos 25 grandes pensadores de todo o mundo por uma conceituada revista francesa. Como é que reagiu a isto e sendo em França?
- Já não reajo, isso é uma coisa. Há 25, há tantos, tantos que não estão lá, portanto não vale a pena falar disso. Há tantos, tantos.
EP – Vale a pena porque é um pensador português e foi a França, o País onde estudou e viveu que lhe dá este mérito.
- Sim. E então? O que é que quer saber? Se eu gostei?
EP – Se gostou.
ARF – Teve alguma reacção negativa em Portugal? Esse facto levou as pessoas a encarar o professor José Gil de uma forma invejosa?
- Ah sim. Até houve um episódio que não foi muito agradável com um grande amigo, que não vale a pena estar a evocar. Houve um episódio desse tipo porque, enfim, sempre histórias de inveja.
ARF – Inveja, sempre.
- Sim, são histórias de inveja.
ARF – Há bocado estávamos a falar da crise e perguntou qual delas, porque há várias crises. Mas esta crise económica e financeira mundial que nos está a atingir em força, apesar do sorriso do primeiro-ministro, não é uma oportunidade para nós alterarmos a nossa forma de estar no mundo e estar na vida?
- Claro, teoricamente pode ser, mas acha que vai ser? Nós vamos ser obrigados a viver de outra maneira. Comos e sabe, ninguém sabe nada da crise. Mas suponhamos que realmente a crise vai durar dez anos, ou vai durar quinze anos. Quinze anos é muito tempo e nós vamos ter de mudar, vamos ter de mudar de maneira de viver, a nossa comunidade vai modificar-se, a relação ricos/pobres vai modificar-se em Portugal. Em quinze anos de crise vai haver muita coisa que se passará, muita água que passará debaixo das pontes com certeza. E nós vamos ter de nos adaptar. Agora, o que é que significa crise durante quinze anos? Se vai haver muita coisa que vai acontecer. A minha ideia, a ideia de toda a gente quando diz uma crise durante quinze anos é que vai ser cada vez pior, lentamente, no sentido de que nós vamos perdendo os pequeninos privilégios, a pobreza vai aumentar, vai atingir cada vez mais classes médias.
EP – Mas ai pode vir outra carga de pessimismo.
- Pode vir até muita outra coisa, sabe.
EP – Ou seja, os portugueses têm motivos para serem pessimistas?
- Têm. Mas que portugueses? Sabe que venda de carros de alta gama aumentou.
ARF – O fosso entre ricos e pobres aumentou imenso.
- E pior. Quer dizer, melhor. Aumentou e esse fosso que era encoberto, que se escondia, por várias razões, até porque os pobres escondiam, esse fosso vai aparecer à tona. E quando aparecer à tona vai ser uma das realidades quotidianas da nossa vida. E isso vai modificar muito a nossa maneira de percepcionar o outro, o outro português e de nos percepcionarmos nós mesmos enquanto colectividade. Não sabemos o que vai acontecer.
ARF – Essa realidade vai aumentar os laços de solidariedade entre os portugueses? Perceber o outro de forma diferente?
- É possível. A sociedade portuguesa guarda um capital muito forte ainda do que se perdeu muito nas sociedades hiperdesenvolvidas ou as sociedades europeias. Que é o capital afectivo. Pode parecer, e é verdade que houve uma diminuição dessa afectividade social. Mas quando um estrangeiro vem a Portugal e vê os portugueses e vê como é recebido, tratado, falado reconhece, percebe isso, percebe que há ali qualquer coisa que já não tem no seu País. E isso chamo uma afectividade colectiva que existe cada vez menos, como sabe nas grandes cidades portuguesas. Mas que Portugal tem ainda.
ARF – É um capital.
- É um capital que está a ser desbaratado e está a ser desbaratado entre outras coisas porque nas grandes reformas com um modelo de gestão e da modernização não há lugar para esse capital afectivo.
ARF – Refere-se a que reformas?
- Reformas da modernização, que não são só portuguesas, de toda a sociedade europeia. Mas em Portugal, que quer ser realizada e posta em prática por estes governantes de hoje.
EP – Que países é que podíamos ter como referência?
- Como referência? Não sei. Eu não sei que referência. Mas se está a falar ainda em capital afectivo possivelmente a Irlanda, onde isso existe.
ARF – E isso tem reflexo na vida do País e do seu desenvolvimento.
- Com certeza.
ARF – O professor diz que Portugal não tem um projecto de futuro. É verdade isto?
- Isso é evidente. É isso mesmo que não existe numa política. Veja. A política da modernização é uma política que está a crer no fundo alargar um certo espaço presente em que as relações de gestão, as relações entre as pessoas dentro de uma empresa, de uma instituição são determinadas por avaliações, por simplificações de actividades, pela produtividade, pela deslocalização do trabalho. Nisso não se toma em consideração absolutamente a questão afectiva. Isto poderá fazer rir. Mas que faça rir é que é pena. Mas quando se fala, por exemplo, em alargar o período em que a mulher pode ficar em casa depois da maternidade nós estamos a falar de uma afectividade que é tomada em conta pelo Estado. E isso é muito importante.
ARF – E o marido poder ficar em casa também.
- Isso. E ter em conta a afectividade, tão premente nos portugueses hoje, ainda, é fazer com que precisamente se corrijam todas as desumanizações que implicam critérios, como os critérios de avaliação.
ARF – Como estamos a ver nos professores.
- Claro.
ARF – E agora vai chegar também aos professores universitários.
- Vai ser isso.
EP – A propósito da afectividade. Na mensagem de Natal do primeiro-ministro, além de se falar no ano difícil, Sócrates agradeceu os sacrifícios feitos. Há uma tentativa de criar laços afectivos com os portugueses?
- Possivelmente. Mas eles não sabem é o que é a afectividade. O discurso do primeiro-ministro é um discurso absolutamente frio. Aquilo é retórico. Mesmo que ele sinta. Ele não está com as pessoas. Estar com as pessoas é precisamente o contrário, é ter uma palavra, saber que aquilo é uma pessoa, antes de ser um elemento ou agente político ou eleitoral. É uma pessoa. Claro. Agora há a política. Como é que eu vou fazer entrar a pessoa dentro da política, tudo isto são problemas que ele não põe.
ARF – Como é que este povo e estas pessoas votam normalmente à esquerda? O que é que a esquerda significa para as pessoas? Ou não entendem o que é esquerda e direita?
- Eu acho que isto tem a ver com 25 de Abril ainda. Não por ser o 25 de Abril. Mas tem a ver no fundo com o facto de o 25 de Abril ter modificado completamente uma desastrosa história da nossa sociedade. Há sítios no Marão em que se divide o tempo cronológico entre no tempo em que eu não comia bifes e depois do 25 de Abril é o tempo em que eu passei a comer bifes. Bom. E quem trouxe os bifes? Foi a esquerda. Mas não foi só os bifes. Os portugueses gostam da liberdade. E vê-se, viu-se logo quando puderam votar. As pessoas não são parvas.
EP – Mas como é que essa esquerda, a do 25 de Abril e a da agora, está?
- Pois. A esquerda está pelas ruas da amargura. Quase. Quase. Só não está porque a direita ainda está pior. O melhor aliado da esquerda é a direita.
EP – A direita precisa dessa figura de líder?
- Absolutamente. Precisa de uma figura de líder. Não creio que a doutora Manuela Ferreira Leite seja uma líder. Poderá ser tudo, do ponto de vista da competência, mas não tem qualidades de líder e qualidades políticas. E vamos assistir ou à sua substituição ou a mais um triunfo por negação de José Sócrates.
ARF – Agora a União Europeia, em que Portugal está desde 1986. A UE vai no bom caminho ou está a cometer erros históricos que podem ser graves no futuro próximo?
- Tem cometido muitos, como sabe. Tem cometido muitos. Agora, resta saber o que se quer da Europa. E voltamos sempre à mesma questão.
ARF – É federalista?
- Eu sou, sim, sou. E até por um federalismo tal que pudesse fazer coexistir uma Europa sem fronteiras geopolíticas com uma Europa que possa ter o peso económico que sustenha toda uma cultura da Europa que se está a perder. Quero eu dizer. A Europa é um território, se quiser, que fez a história, que fez a inteligência do homem. É um território e é mais do que um Estado, uma superpotência. É muito mais do que isso. Há qualquer coisa na Europa que faz dela uma fonte permanente de invenção. E agora estamos a ser invadidos pela cultura de massa americana. E isso é um drama para nós todos.
EP – É uma não-afirmação?
- É uma não-afirmação da Europa. Absolutamente. O drama, o dilema é que para que haja afirmação da Europa é preciso que ela se torne numa superpotência militar, económica. E isso é capaz de acabar com a Europa e fazer da Europa um Estado Nação banal, federal. Temos de inventar uma nova Europa.
ARF – Esta Europa que conhecemos é uma Europa fortaleza. Tem medo dos imigrantes. Também tem medo do fora, de tudo o que vem de fora.
- Claro. Tem medo. Nós vivemos numa espécie de equívoco quase realizado. Por exemplo. A questão da Turquia. Do ponto de vista dos princípios nós temos de admitir que a Turquia entre para a União Europeia. Do ponto de vista prático nós não podemos deixar entrar para a Europa um País que não segue as regras democráticas. E que por outro lado pode ser realmente uma via de entrada do fundamentalismo.
PERFIL
José Gil, autor de várias obras sobre Filosofia, Artes, Dança e Literatura, nasceu em 1939 em Muecate, Moçambique. Aos 18 anos foi para França onde se licenciou em Filosofia na Faculdade de Letras da Sorbone, em Paris, em 1968. Anos mais tarde doutorou-se em Filosofia na Universidade Paris VIII. Em 1976 regressou a Portugal e foi assessor do secretário de Estado do Ensino Superior do IV Governo Provisório. Em 1981 entrou na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa como professor convidado, onde hoje é professor catedrático.
António Ribeiro Ferreira (Correio da Manhã), Elisabete Pato (Rádio Clube)
Entrevista - José Gil
“Há um combate entre o sorriso de José Sócrates e a crise mundial”José Gil, filósofo, acusa o primeiro-ministro de ter um projecto de carreira pessoal, autocrático, com um sorriso permanente. E o Governo de andar de fato cinzento.
Correio da Manhã/Rádio Clube – Sente-se bem no País em que vive?
José Gil – Razoavelmente. Não me sinto muito bem. A minha relação com Portugal é uma relação difícil e pode compreender-se porque eu sou um filho de um ex-colono, que viveu em Portugal, no fundo, dois anos. Aos dezassete, dezoito anos e depois voltei depois de praticamente trinta e cinco anos vividos, uma vida vivida em outro País.
EP – Em França.
- Em França.
EP – Um dos grandes sucessos, o livro que escreveu ‘Portugal, Hoje – O Medo de Existir’, foi publicado em 2004 e retracta a instabilidade, o desnorte, o medo de existir, sobretudo, e também uma análise à actualidade de então. O livro é publicado ainda com Santana Lopes no poder. Hoje escreveria o mesmo livro?
- Escreveria talvez, isto não tem muito sentido, noventa e tal cento do livro. Noventa e tal por cento escreveria da mesma maneira. Se bem que muitas coisas tenham mudado.
ARF – Para melhor ou para pior?
- Umas para melhor, outras para pior. E isto não é para fazer um equilíbrio. Não. Parece-se que são coisas diferentes. O que evoluiu para melhor é diferente daquilo que evoluiu para pior.
ARF – E o que é que evoluiu para melhor em Portugal nestes quatro anos?
- Olhe. Parece-me que há em Portugal cada vez mais uma aprendizagem por parte da comunidade portuguesa e da sociedade civil da democracia, da democracia dos direitos. E isso é bom, isso parece-me melhor. Depois há um desenvolvimento individual da criação cultural. E isso também me parece muito melhor. De certa maneira há, curiosamente é paradoxal o que vou dizer, curiosamente há uma espécie de liberdade maior mas que não vem do poder político, é uma liberdade maior que vem dos conflitos, dos embates sociais, do facto desses embates aparecerem mos meios mediáticos e serem consciente na parte da população. Também o facto de Portugal estar cada vez mais consciente do que se passa, como se dizia antigamente, lá fora. Quer dizer, Portugal está cada vez mais lá fora, o que dá uma reacção cada vez mais dentro. E isto é devido certamente a reacções sociais, das pessoas.
EP – Mas é a mentalidade dos portugueses que está a mudar ou são os mais novos que nasceram já depois do 25 de Abril, da Revolução de 74, que já têm outra forma de pensar ou não?
- Não. Teriam outra forma de pensar, mas não têm. E não têm, primeiro, porque herdam uma velha forma dos pais. E naquilo que mudam na sua vida de adolescente, de jovem da universidade ou do trabalho, pura e simplesmente, eles vão encontrar umas estruturas, vão encontrar quadros de vida, escritórios, aonde encontram, aonde vão novamente ter de se moldar aos velhos comportamentos, às velhas mentalidades.
EP – Salazar ainda está na fonte.
- Ai, eu acho que sim.
EP – Mesmo nos mais novos?
- Absolutamente. Mesmo que seja subliminarmente ou inconscientemente ele está. É claro. Para mim é claro.
ARF – Ainda somos um País salazarento?
- Ai somos. Somos um País salazarento em certas coisas. Não é um País salazarento.
ARF – Claro. Mas o que domina, o que importa, o que fixa, como disse a propósito dos jovens, ainda é um certo ambiente cultural que os domina, que os leva a pensar assim e também a comportarem-se de uma forma pequenina, como refere. Os portugueses gostam de ser pequeninos?
- Os portugueses gostam de ser pequeninos. Sabe, muitas vezes eu comparo as reacções às reacções dos habitantes das ilhas. Eu conheci uma ilha, conheci muito bem uma ilha onde vivi, que foi a Córsega, e fiquei de tal maneira marcado por aquelas mentalidades que quando vim para Portugal eu era capaz de reconhecer, ao fim de dez minutos de conversa, que aquela pessoa vinha dos Açores. Sem saber mais nada, outro indício. Quer dizer, há qualquer coisa de muito específico no habitante da ilha. É que a ilha é como um corpo de onde se sai e para onde se volta quase necessariamente. É muito difícil as pessoas desligarem-se da ilha.
EP – Nós somos um povo ainda fechado?
- Nós somos um povo ainda muito fechado que se está agora, agora, agora, quando eu digo agora são meses a abrir-se assim.
EP- E quantas gerações são precisas para nos abrirmos?
- Não sei. Não sei. Se há coisa mais difícil de mudar é o que se chama mentalidades, não é?
ARF – Mas há aqui um paradoxo. Temos muito o espírito da ilha, mas fomos um Império. Andámos por todo o mundo, conhecemos o mundo há muitos séculos. Porque temos sempre esse espírito da ilha?
- Nós não temos sempre. Primeiro, lembre-se que o nosso Império é um Império desmedido para a nossa capacidade e para a nossa economia. Em segundo lugar, só para lhe lembrar assim frases, lembre-se que o Salazar chamava ao nosso Império a nossa quinta. Isto é típico. Quer dizer que o Império não constituía um horizonte. Quer dizer, digamos, uma palavra de que eu gosto muito, não era um fora. O fora é um desconhecido. Não. Eu não estou a brincar, nem estou a forjar o que quer que seja. Lembro-me que quando vim de Lourenço Marques para cursar a universidade cá havia pessoas que me perguntavam: “Há leões em Lourenço Marques? Passeiam-se na rua?” Está a ver o desconhecimento total.
ARF – Referiu que um dos aspectos positivos em Portugal nestes últimos anos era as pessoas conhecerem melhor a democracia e estarem a viver melhor a democracia. Mas isto está a incomodar o poder político?
- Claro que está.
ARF – A incomodar muito?
- Esse é o aspecto, se falarmos unicamente no plano político. Portugal não é o plano político. Não é. Felizmente é muito mais do que isso. Não vale a pena bater no ceguinho, toda a gente fala nisso, eu também. Há realmente uma nova tendência para o autoritarismo, para uma nova forma de autoritarismo.
EP – Arrogância?
- Arrogância, autoritarismo. Quer dizer, desprezo da democracia em nome da vontade autocrática de um governante ou dois.
ARF – É o que se passa no caso dos professores? Nomeadamente neste momento em que os professores estão na rua, manifestações imensas. Refere-se muito à não-inscrição. A não-inscrição neste caso é o Governo ignorar isso tudo?
- Totalmente. É um exemplo típico de não-inscrição. Totalmente. Não só não-inscrição. Há pior do que isso. Eu ouvi o secretário de Estado, como milhões de pessoas ouviram na televisão, o secretário de Estado Pedreira dizer, depois das assinaturas, isto foi há três dias.
ARF – O abaixo-assinado.
- O abaixo-assinado apresentado no Ministério da Educação. Dizendo, mas isso podia ser forjado. Quer dizer. Eu fiquei com vergonha.
ARF – Porque não era preciso apresentar a escola.
- Não era preciso apresentar. Poder-se-ia forjar.
ARF – As assinaturas.
- Quer dizer. Não são as 60 mil assinaturas. É o facto de forjar. Percebe?
ARF – Claro.
- Quando isto vem à cabeça de alguém isto revela a cabeça de alguém.
ARF – Exacto. Mas isso incomoda muito. Estas manifestações sociais, de protesto, de viver a democracia, que nós estamos a aprender lá fora, a perceber, a abrir?
- Deve incomodar. Deve ter incomodado um projecto pessoal que nós não conhecemos nem nunca conheceremos.
EP – De José Sócrates?
- De José Sócrates. Mas que temos indícios. Um projecto de carreira pessoal. Isto é tudo muito pequenino, não estamos a falar de grandes cultos de personalidade nem de grandes regimes autoritários, nem nada. Seria á nossa medida mas seria qualquer coisa de novo. E repare como realmente há condições para um novo tipo de obediência ao poder.
ARF – Neste momento reforçado com esta sensação de pânico e de crise que as pessoas estão a viver em que aparece o primeiro-ministro a dizer que vai salvar todos, não é?
- Absolutamente. E repare como é o único. Quando eu falo de autocratismo ou autocracia estou bem consciente que não estou só a falar do Governo, estou a falar sobretudo de uma pessoa. Isto pode parecer anódino, não significativo. Nós temos um Governo, mas um Governo cinzento, morno. Quem é que sobressai ali? Nada.
ARF – Podemos falar de vários nomes.
- Nada. De vários nomes e nada.
EP – Sobressaiam talvez pela parte menos boa.
- Menos boa, não sorriem, não estão contentes com a vida, parecem mais ou menos autómatos. Há ali pessoas muito inteligentes, não se vê nada, tudo aquilo é fato cinzento. E no meio, ou por cima ou ao lado há uma pessoa que tem um sorriso sempre até às orelhas, um dos sorrisos extraordinários que não pára, pára de vez em quando, e como se a vida fosse o triunfo quotidiano do progresso e essa pessoa é o primeiro-ministro. Não é esquisito isto? Aquele sorriso não deveria contagiar os mais próximos? O sorriso e os afectos é o que contagia imediatamente. E não contagia.
EP - Quais são os melhores governantes?
- Não vou nomear.
EP – Há pastas mais sensíveis do que outras. A pasta da Educação é sempre sensível, a pasta da Justiça e da Administração Interna.
- Não lhe sei dizer. Não sei comparar.
EP – Mas a avaliação que acaba de fazer, do cinzentismo. É um cinzentismo geral?
- É um cinzentismo que se estende em geral. Quem é ali a pessoa? Havia ali um ministro, que era o António Costa, que tinha a sua autonomia. Bem, a começar pelo ministro do Trabalho, que é uma tumba, a acabar na ministra da Educação, cuja espontaneidade expressiva...é isso. Falta espontaneidade expressiva aos ministros. São muito simpáticos, podem ser muito simpáticos pessoalmente.
ARF – E até inteligentes.
- Claro. Mas não é isso. Há qualquer coisa que faz com que eles não se manifestem em sorrisos nem sejam espontâneos. Ora isso é o sinal de que eles não pretendem sequer seduzir as pessoas.
EP – E isso passa para os portugueses? Esse cinzentismo passa?
- Passa com certeza.
EP – E pode ser o ponto fraco do Governo?
- Não, há outros. Ponto fraco do Governo é o facto de não ter ideias. Esse é o ponto fraco do Governo. Mas que passa, passa. Repare que há aqui um paradoxo muito grande aparente. O facto de haver manifestações e manifestações não só na Educação mas também em outros campos do trabalho, como os funcionários públicos e as sondagens darem sempre uma vantagem muito grande a José Sócrates. As pessoas estão perdidas, as pessoas e o português por excelência é um ser que está sempre a hesitar. O desassossego do Pessoa é também uma passagem contínua de um sítio para o outro, de um sítio para o outro. Estão sempre a hesitar. E quando aparece alguém que se mostra determinado, forte, etc, a pessoa fica fascinada. Aconteceu com Álvaro Cunhal, aconteceu com Cavaco Silva. Quando aparece assim uma pessoa que sabe o que quer. Pode saber muito pouco, pode ser estreitíssimo, mas sabe o que quer e é dirigente e tem a aura de ser dirigente.
ARF – E os portugueses ficam deslumbrados com esse cidadão?
- Absolutamente. Ora a identificação que os portugueses fazem com o Sócrates, para as sondagens darem os resultados que dão, vem de uma identificação pessoal. Não vem de uma identificação com a política geral do Governo. Porque logo ao lado as sondagens sobre a política do Governo não correspondem a essa sondagem sobre Sócrates.
ARF – Exactamente. É diferente.
- É portanto qualquer coisa de pessoal. É uma relação pessoal. Enfim, ali temos uma referência. Agora, nós que não temos referência de nada, sobretudo do futuro que aí vem, há ali uma pessoa que não só sabe ou parece saber o que quer como está contente. Ainda para mais está satisfeito previamente com o futuro que vai vir. Seguimos uma pessoa assim.
ARF – Somos um bocado fatalistas nisso. É o Salazar, o Cavaco, o Cunhal, agora é o Sócrates e agora não há na oposição ninguém com esse espírito. Uma pessoa que nos inspire essa admiração. O homem ou a mulher estão contentes nós vamos segui-lo de forma acrítica, um bocado como a carneirada, não é?
- É mas também é outra coisa, sabe? Não é só carneirada no sentido pejorativo. É também necessidade de um líder e um líder é um chefe político que tem propriedades muito importantes como o de condensar, atrair uma série de forças e poder utilizá-las para o bem da comunidade. E pode deixar de ser líder, como em certas sociedades, meses depois. Mas durante aqueles meses em que foi líder é uma personagem venerada e que é necessária para a comunidade.
EP – Não se percebe muito bem. Cá está, é a mentalidade dos portugueses ou talvez por não haver uma oposição forte. Se por um lado se manifestam nas ruas contra as políticas do Governo, não só na Educação, por outro quando há uma sondagem o primeiro-ministro continua a subir. O que é que se passa na cabeça dos portugueses?
- É isso que eu quis explicar, enfim, na medida em que isso é possível. As pessoas identificam-se enquanto egos. Quer dizer, eu na minha pessoa sou uma pessoa insegura, incerta, cheia de hesitações, não sei o que fazer e tenho ali, eu, no fundo, identifico-me pessoalmente com o Sócrates.
EP – Nisso José Sócrates é bom?
- Muito bom. Perfeito, como sabe. Não é que seja um grande sedutor, é um bom orador, energeticamente contagiante, ora os portugueses estão ávidos de carisma. Não é que ele tenha carisma, mas o carisma é-lhe atribuído. E portanto recebe-se o carisma por refluxo. É aquilo que se dá e o que se recebe.
ARF – Isso não é também pelo facto de os portugueses terem medo de existir? É verdade isto? Precisam de alguém que tome conta deles, que os proteja, que lhes indique o Governo?
- Eu acho que é verdade e tem raízes históricas muito grandes e que foi sedimentado fortemente durante o salazarismo e que tem a ver com qualquer coisa que existe na sociedade portuguesa. Que é o facto de o português não atingir a maturidade.
EP – Precisa sempre do outro?
- Precisa sempre do outro, há qualquer coisa de adolescente no adulto, na sua estabilidade emocional, emotiva, no seu poder de iniciativa, no seu poder de risco em relação a si próprio.
EP – Podemos dizer que esta não é só uma crise económica?
- Está a falar de Portugal?
EP – Sim.
- Mas qual crise. É que agora nós temos duas, três. Antes da crise mundial já havia uma crise em Portugal. Agora já não há porquê?
ARF – Agora são muitas crises.
- É, não é?
ARF – E esta está a assustar muito mais as pessoas.
- Claro, porque já estavam assustadas e esta não depende de nós. Vamos ver, Agora há um embate, uma espécie de combate entre o sorriso do Sócrates e a crise mundial.
ARF – Agora vamos ver como se resolve.
- Bem, estamos a ver já as primeiras transformações. É que o sorriso já esmoreceu de há uns dias para cá.
EP – E no próprio Governo, não é?
- O Governo nunca teve sorrisos, excepto o ministro Lino, que ri de vez em quando fazendo gafes.
ARF – Voltando à Educação. Sempre tivemos um grande défice na Educação. Os alunos são mal preparados no liceu, chegam à universidade mal preparados e chegam à vida real mal preparados. Este processo nunca foi resolvido nestes anos de democracia. E cada vez está pior, não está? De preparar as pessoas para terem um olhar lá para fora? Como professor universitário não acha isso?
- Eu não posso falar ainda porque está a ser desenvolvido, está a começar a reforma universitária, mas no que diz respeito à reforma do ensino secundário eu acho, hoje acho que é um desastre. Lamento profundamente, tenho uma amargura profunda. Olhe, eu aí tenho uma amargura pelo meu País. Realmente. Realmente eu esperava qualquer coisa, e espero ainda não sei como. Porque é isso que vai mudar o País. Nós vimos de muito longe, de muito longe de analfabetismo, de iletracia, de pobreza. Somos um País secularmente pobre em tudo. Mentalmente e materialmente pobre. E era uma maneira agora de se transformar tudo.
ARF – Foi uma oportunidade perdida?
- Estou convencido que as reformas que estão a ser realizadas não vão transformar o nosso País.
ARF – É muitas vezes acusado de ser um pessimista por aqueles que não gostam de ouvir algumas verdades. É pessimista, optimista, isso pode-se classificar assim o que diz e analisa sobre a sociedade portuguesa?
- Eu já me expliquei várias vezes sobre isso. Eu acho que pessimismo, optimismo são atitudes que se têm em relação a uma linha histórica qualquer. Se se está convencido que essa linha vai para pior é-se pessimista. Se não é-se optimista. Mas são atitudes. Saber se intrinsecamente se é optimista ou pessimista, eu estou convencido que é muito difícil encontrar verdadeiros pessimistas. Porque aqueles que são pessimistas e que segregam, nos seus livros, nos seus artigos o pessimismo no fundo estão a alimentar o seu optimismo visceral, vital, que é de viver, é de gostar de viver com essa actividade de ser pessimista. Mais nada.
EP – Há pouco falava nos 40 anos que esteve fora de Portugal, nos anos que viveu em França, País em que se licenciou e doutorou. Chegou a Portugal em 1976 e fez parte do Governo provisório. Como é que foi recebido quando cá chegou pela comunidade filosófica?
- Não havia.
EP – E por outros sectores académicos?
- No fundo não havia comunidade filosófica. Tenho unicamente a lembrança de ter sido muito bem recebido pelo Fernando Belo, o professor Fernando Belo, que está jubilado agora. E mais ninguém, mais ninguém. Aliás, eu não estava ligado, nem em contacto com a comunidade filosófica. Eu era assessor do secretário de Estado.
ARF – Em 1976. Veio e foi-se embora outra vez.
- Foi.
ARF – As comunidades reagem mal às pessoas que fazem a vida lá fora, reagem mal aos estrangeirados? Faz parte também da forma como encaramos o mundo, o lá fora? É inveja do sucesso?
- Quando a pessoa vai lá para fora e vence. Porque há muitos portugueses e houve muitos portugueses que foram lá para fora e não venceram. Até acabaram muito mal. E eu conheci, até pessoas com talento. O exílio, quer seja forçado ou voluntário, é muito difícil, é muito duro. Muito duro. E há os que viviam, por exemplo, em Paris e constantemente existiam na Avenida da Liberdade em Lisboa. O que lhes interessava. Quer dizer, nunca foram contaminados, nunca tiveram um embate com uma sociedade extremamente dura, se bem que fossem bons tempos, os tempos do gaulismo. Dura porque era uma sociedade fechada também para os estrangeiros, era muito difícil entrar em famílias francesas, conhecer o modo de vida francês, por dentro. Mas como é uma sociedade, uma cidade extraordinária, Paris, havia sempre um cosmopolitismo, para empregar esta palavra, que era absolutamente extraordinário. Agora, isso para dizer o seguinte. As pessoas tinham inveja dos que iam lá para fora. Nós deixámos de ter aquilo que em psicanálise se chama os benefícios secundários da neurose. Quer dizer que não temos a almofadinha da mamã, estamos mal com a noiva ou estamos mal com a namorada corremos logo para a almofadinha da manhã. É um exemplo caricato mas é isso. Que nós tínhamos aqui, que eu tinha aqui. E quando se vai lá para fora deixa-se de ter.
EP – Ainda hoje é assim.
- Ainda hoje é assim. Ainda há os benefícios secundários. É pena.
EP – Eu estou a perguntar se ainda hoje é assim.
- Não. Já é diferente. Primeiro, a comunidade portuguesa agora é muito diferente porque é uma comunidade de segunda geração, terceira geração.
EP – Foi considerado um dos 25 grandes pensadores de todo o mundo por uma conceituada revista francesa. Como é que reagiu a isto e sendo em França?
- Já não reajo, isso é uma coisa. Há 25, há tantos, tantos que não estão lá, portanto não vale a pena falar disso. Há tantos, tantos.
EP – Vale a pena porque é um pensador português e foi a França, o País onde estudou e viveu que lhe dá este mérito.
- Sim. E então? O que é que quer saber? Se eu gostei?
EP – Se gostou.
ARF – Teve alguma reacção negativa em Portugal? Esse facto levou as pessoas a encarar o professor José Gil de uma forma invejosa?
- Ah sim. Até houve um episódio que não foi muito agradável com um grande amigo, que não vale a pena estar a evocar. Houve um episódio desse tipo porque, enfim, sempre histórias de inveja.
ARF – Inveja, sempre.
- Sim, são histórias de inveja.
ARF – Há bocado estávamos a falar da crise e perguntou qual delas, porque há várias crises. Mas esta crise económica e financeira mundial que nos está a atingir em força, apesar do sorriso do primeiro-ministro, não é uma oportunidade para nós alterarmos a nossa forma de estar no mundo e estar na vida?
- Claro, teoricamente pode ser, mas acha que vai ser? Nós vamos ser obrigados a viver de outra maneira. Comos e sabe, ninguém sabe nada da crise. Mas suponhamos que realmente a crise vai durar dez anos, ou vai durar quinze anos. Quinze anos é muito tempo e nós vamos ter de mudar, vamos ter de mudar de maneira de viver, a nossa comunidade vai modificar-se, a relação ricos/pobres vai modificar-se em Portugal. Em quinze anos de crise vai haver muita coisa que se passará, muita água que passará debaixo das pontes com certeza. E nós vamos ter de nos adaptar. Agora, o que é que significa crise durante quinze anos? Se vai haver muita coisa que vai acontecer. A minha ideia, a ideia de toda a gente quando diz uma crise durante quinze anos é que vai ser cada vez pior, lentamente, no sentido de que nós vamos perdendo os pequeninos privilégios, a pobreza vai aumentar, vai atingir cada vez mais classes médias.
EP – Mas ai pode vir outra carga de pessimismo.
- Pode vir até muita outra coisa, sabe.
EP – Ou seja, os portugueses têm motivos para serem pessimistas?
- Têm. Mas que portugueses? Sabe que venda de carros de alta gama aumentou.
ARF – O fosso entre ricos e pobres aumentou imenso.
- E pior. Quer dizer, melhor. Aumentou e esse fosso que era encoberto, que se escondia, por várias razões, até porque os pobres escondiam, esse fosso vai aparecer à tona. E quando aparecer à tona vai ser uma das realidades quotidianas da nossa vida. E isso vai modificar muito a nossa maneira de percepcionar o outro, o outro português e de nos percepcionarmos nós mesmos enquanto colectividade. Não sabemos o que vai acontecer.
ARF – Essa realidade vai aumentar os laços de solidariedade entre os portugueses? Perceber o outro de forma diferente?
- É possível. A sociedade portuguesa guarda um capital muito forte ainda do que se perdeu muito nas sociedades hiperdesenvolvidas ou as sociedades europeias. Que é o capital afectivo. Pode parecer, e é verdade que houve uma diminuição dessa afectividade social. Mas quando um estrangeiro vem a Portugal e vê os portugueses e vê como é recebido, tratado, falado reconhece, percebe isso, percebe que há ali qualquer coisa que já não tem no seu País. E isso chamo uma afectividade colectiva que existe cada vez menos, como sabe nas grandes cidades portuguesas. Mas que Portugal tem ainda.
ARF – É um capital.
- É um capital que está a ser desbaratado e está a ser desbaratado entre outras coisas porque nas grandes reformas com um modelo de gestão e da modernização não há lugar para esse capital afectivo.
ARF – Refere-se a que reformas?
- Reformas da modernização, que não são só portuguesas, de toda a sociedade europeia. Mas em Portugal, que quer ser realizada e posta em prática por estes governantes de hoje.
EP – Que países é que podíamos ter como referência?
- Como referência? Não sei. Eu não sei que referência. Mas se está a falar ainda em capital afectivo possivelmente a Irlanda, onde isso existe.
ARF – E isso tem reflexo na vida do País e do seu desenvolvimento.
- Com certeza.
ARF – O professor diz que Portugal não tem um projecto de futuro. É verdade isto?
- Isso é evidente. É isso mesmo que não existe numa política. Veja. A política da modernização é uma política que está a crer no fundo alargar um certo espaço presente em que as relações de gestão, as relações entre as pessoas dentro de uma empresa, de uma instituição são determinadas por avaliações, por simplificações de actividades, pela produtividade, pela deslocalização do trabalho. Nisso não se toma em consideração absolutamente a questão afectiva. Isto poderá fazer rir. Mas que faça rir é que é pena. Mas quando se fala, por exemplo, em alargar o período em que a mulher pode ficar em casa depois da maternidade nós estamos a falar de uma afectividade que é tomada em conta pelo Estado. E isso é muito importante.
ARF – E o marido poder ficar em casa também.
- Isso. E ter em conta a afectividade, tão premente nos portugueses hoje, ainda, é fazer com que precisamente se corrijam todas as desumanizações que implicam critérios, como os critérios de avaliação.
ARF – Como estamos a ver nos professores.
- Claro.
ARF – E agora vai chegar também aos professores universitários.
- Vai ser isso.
EP – A propósito da afectividade. Na mensagem de Natal do primeiro-ministro, além de se falar no ano difícil, Sócrates agradeceu os sacrifícios feitos. Há uma tentativa de criar laços afectivos com os portugueses?
- Possivelmente. Mas eles não sabem é o que é a afectividade. O discurso do primeiro-ministro é um discurso absolutamente frio. Aquilo é retórico. Mesmo que ele sinta. Ele não está com as pessoas. Estar com as pessoas é precisamente o contrário, é ter uma palavra, saber que aquilo é uma pessoa, antes de ser um elemento ou agente político ou eleitoral. É uma pessoa. Claro. Agora há a política. Como é que eu vou fazer entrar a pessoa dentro da política, tudo isto são problemas que ele não põe.
ARF – Como é que este povo e estas pessoas votam normalmente à esquerda? O que é que a esquerda significa para as pessoas? Ou não entendem o que é esquerda e direita?
- Eu acho que isto tem a ver com 25 de Abril ainda. Não por ser o 25 de Abril. Mas tem a ver no fundo com o facto de o 25 de Abril ter modificado completamente uma desastrosa história da nossa sociedade. Há sítios no Marão em que se divide o tempo cronológico entre no tempo em que eu não comia bifes e depois do 25 de Abril é o tempo em que eu passei a comer bifes. Bom. E quem trouxe os bifes? Foi a esquerda. Mas não foi só os bifes. Os portugueses gostam da liberdade. E vê-se, viu-se logo quando puderam votar. As pessoas não são parvas.
EP – Mas como é que essa esquerda, a do 25 de Abril e a da agora, está?
- Pois. A esquerda está pelas ruas da amargura. Quase. Quase. Só não está porque a direita ainda está pior. O melhor aliado da esquerda é a direita.
EP – A direita precisa dessa figura de líder?
- Absolutamente. Precisa de uma figura de líder. Não creio que a doutora Manuela Ferreira Leite seja uma líder. Poderá ser tudo, do ponto de vista da competência, mas não tem qualidades de líder e qualidades políticas. E vamos assistir ou à sua substituição ou a mais um triunfo por negação de José Sócrates.
ARF – Agora a União Europeia, em que Portugal está desde 1986. A UE vai no bom caminho ou está a cometer erros históricos que podem ser graves no futuro próximo?
- Tem cometido muitos, como sabe. Tem cometido muitos. Agora, resta saber o que se quer da Europa. E voltamos sempre à mesma questão.
ARF – É federalista?
- Eu sou, sim, sou. E até por um federalismo tal que pudesse fazer coexistir uma Europa sem fronteiras geopolíticas com uma Europa que possa ter o peso económico que sustenha toda uma cultura da Europa que se está a perder. Quero eu dizer. A Europa é um território, se quiser, que fez a história, que fez a inteligência do homem. É um território e é mais do que um Estado, uma superpotência. É muito mais do que isso. Há qualquer coisa na Europa que faz dela uma fonte permanente de invenção. E agora estamos a ser invadidos pela cultura de massa americana. E isso é um drama para nós todos.
EP – É uma não-afirmação?
- É uma não-afirmação da Europa. Absolutamente. O drama, o dilema é que para que haja afirmação da Europa é preciso que ela se torne numa superpotência militar, económica. E isso é capaz de acabar com a Europa e fazer da Europa um Estado Nação banal, federal. Temos de inventar uma nova Europa.
ARF – Esta Europa que conhecemos é uma Europa fortaleza. Tem medo dos imigrantes. Também tem medo do fora, de tudo o que vem de fora.
- Claro. Tem medo. Nós vivemos numa espécie de equívoco quase realizado. Por exemplo. A questão da Turquia. Do ponto de vista dos princípios nós temos de admitir que a Turquia entre para a União Europeia. Do ponto de vista prático nós não podemos deixar entrar para a Europa um País que não segue as regras democráticas. E que por outro lado pode ser realmente uma via de entrada do fundamentalismo.
PERFIL
José Gil, autor de várias obras sobre Filosofia, Artes, Dança e Literatura, nasceu em 1939 em Muecate, Moçambique. Aos 18 anos foi para França onde se licenciou em Filosofia na Faculdade de Letras da Sorbone, em Paris, em 1968. Anos mais tarde doutorou-se em Filosofia na Universidade Paris VIII. Em 1976 regressou a Portugal e foi assessor do secretário de Estado do Ensino Superior do IV Governo Provisório. Em 1981 entrou na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa como professor convidado, onde hoje é professor catedrático.
António Ribeiro Ferreira (Correio da Manhã), Elisabete Pato (Rádio Clube)
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